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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Publicado por SAFENDEONLINE | 09:36
Na cidade da Praia chamava-se apenas Flávio Almada. O Flávio ardina, lavador de carros, vendedor no mercado do Sucupira, tudo o que pudesse ajudar a conseguir os 600 escudos para as propinas da escola. Cresceu entre os bairros de Safende, Calabaceira e Eugénio Lima - e pelas suas ruas descobriu o hip-hop.
À noite, escrevia poesia e estudava. O hip-hop em inglês contribuía para aumentar a sua cultura geral. Em 2003, aos 19 anos, Flávio mudou-se com a família para o bairro da Cova da Moura, em Lisboa, e foi o choque.

Terá o rapper L.B.C Souldjah Minao nascido como resposta à brutalidade policial e à discriminação social que, entretanto, viu crescer à sua volta?

"Nos bairros onde vivi, na Praia, também havia problemas, mas era muito diferente."
As difíceis condições de vida dos cabo-verdianos, comparadas às dos portugueses e restante população, a estigmatização perante a comunicação social, deram início a uma tomada de consciência da situação da comunidade.
"O tipo de trabalho que os portugueses não querem e que sobra para os imigrantes, na construção civil, nas limpezas, tudo isso aliada à questão da identidade, levaram-me a querer descobrir a minha própria história, a história dos impérios africanos: Songhai, Zimbabué, Egipto, Aksum, as religiões..."
Mas, muitos impérios depois - africanos e europeus - após o fim da escravatura, de colónias e metrópoles, a nova crise mundial, o fosso entre pobres e ricos, falar apenas de uma população, para L.B.C., era demasiado redutora.
"Passei a englobar toda a humanidade nos meus textos, todos os seus problemas."
E esses problemas são enumerados a um ritmo solto de rima, num discurso fluido, por entre acenos e cumprimentos a quem desce e sobe as ladeiras do bairro, ou sentados à porta de bares e restaurantes.
"Brutalidade-policial-exploração-sexual-e-laboral-racismo-machismo", conceitos capazes de acender a chama contestária do jovem rapper, formado na verve das teses libertárias de Amílcar Cabral e de Malcom X - este último olhando-nos, desafiante, de um quadro do alto da parede.
"Eu não podia ficar apenas pela observação", conta L.B.C. Era preciso agir. "Fazer qualquer coisa."

Rimar contra a injustiça

Foi então que começou a participar em eventos que lhe permitiam conhecer melhor a realidade portuguesa, " e a aprender mais sobres estes fenómenos", diz. O resultado foi a criação de uma rede de amigos, a troca de ideias, conversas, encontros, os novos elementos que entram para as rimas, o rap inflamado de ideias contestatárias.
"A questão-do-Terceiro-Mundo-novas-colónias-dentro-das-metrópoles-a-nossa-forma-de-combater-os-problemas-não-ficar-apenas-pela-especulação-observação-intervir..."
Mas cantar apenas não chegava. O que se fala é do que se vive no dia-a-dia do bairro, as dificuldades crescentes. Era preciso ir mais longe. Intervir mais fundo.
"Em 2003, fundámos um jornal, mas não funcionou muito bem; retomámos o projecto, depois, com o Chullage e o Hezbollah e outros amigos rappers e não só, denunciámos a brutalidade da polícia, a morte de um amigo, e de imediato tivemos problemas, caíram-nos em cima."
Agitador social, rapper contestatário, defensor da sua comunidade, o potencial da mensagem de L.B.C. não passa despercebido. É convidado, no âmbito do Programa Escolhas, a colaborar com a Associação Moinho da Juventude e, mais tarde, como mediador numa das escolas mais problemáticas da zona. Aprender como lidam os jovens com os estereótipos da sua cultura de origem.
"Tínhamos cabo-verdianos, ucranianos, brasileiros, paquistaneses, ciganos, e foi quando descobriram que o hip-hop podia funcionar bem como ferramenta para ajudar os jovens a estudar e a não entrar na delinquência; a importância de conhecerem as suas origens, o meio onde vivem, ultrapassar os problemas sociais."
Conhecer como funciona a comunicação social pode ser uma grande vantagem para quem clama por justiça social. Na faculdade, L.B.C conhece novas pessoas ligadas aos media e colabora em outros trabalhos sociais. Participa em manifestações, distribui folhetos de esclarecimento.
Uma simples falha na comunicação, durante uma revista ou identificação pela polícia pode ter resultados perigosos.
"Tínhamos um chamado manual de sobrevivência que distribuíamos, tipo como agir perante a polícia, como dar a identificação ou ajudar a identificar alguém que está connosco, como evitar os problemas, como agir, tudo numa ideia de cidadania."

Rap crioulo e Plataforma Guetto

Levar a mensagem mais longe, trazer uma perspectiva global ao hip-hop crioulo, fazer da Cova da Moura um centro de irradiação desta nova forma de expressão - a música como forma privilegiada de activismo. Mas, será a língua crioula veículo capaz de conter tanta esperança e ambição?
"O hip-hop tem uma linguagem universal", explica L.B.C. "Houve muita gente, especialmente portugueses, que disseram que estávamos limitados por causa da barreira linguística, mas não sabem como estão enganados. O rap crioulo está forte e cada vez mais forte; principalmente através das gerações que nasceram aqui em Portugal, são quem tem mais orgulho nas suas raízes."
Já não há volta a dar, diz L.B.C. O rap crioulo, essa espécie de braço armado da contestação social, ganhou, definitivamente, o  seu espaço em Portugal. "Mais: quando em Cabo Verde ainda estão a discutir se devem ou não oficializar o crioulo, rap crioulo está a pôr a língua cabo-verdiana na boca de muitos portugueses e não só."
E num esforço conjunto com outros rappers crioulos da periferia de Lisboa, surgiu a Plataforma Guetto, "um veículo para levar a comunicação entre os bairros e a diáspora, para trocar ideias sobre a nossa realidade, através da nossa própria voz, sem separatismos, abertos a todos, sem qualquer tipo de racismo, onde cabem negros, brancos." Em suma: não querem que ninguém fale por eles ou pense por eles.
Quando se olha ao espelho, Flávio Almada ou L.B.C Souldjah Minao não vê um líder comunitário, por muito que a imagem e as ideias lhe assentem bem. E como é essa coisa de "ser alguém em movimento, em colaboração com a comunidade?"
A resposta, por muito que o negue, não deixa de fora a grande responsabilidade:
"No futuro quero fazer algo que possa fazer a diferença, mudar a vida das pessoas, de forma positiva, para que não haja necessidade de se estar a falar de todos estes problemas, sem brutalidades dentro do bairro, exploração laboral dentro do bairro, para que todos possam estar legalizados, que a comunidade caminhe unida no mesmo objectivo."
No entanto, para já, a tarefa mais urgente é conseguir economizar o suficiente para poder pagar a faculdade, e retomar o curso de tradutores e intérpretes.
"Não está  ser nada fácil", diz, sorrindo.

Fonte:
Sapo